C01 - UMA PROMESSA POR DEZ ANOS

And in the end
The love you take
Is equal to
The love you make*.
*Tradução: E no fim, o amor que você recebe, é igual, ao amor que você dá;

The End - The Beatles

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Quando me disseram pela primeira vez sobre como eu poderia vender minha vida, o que imediatamente veio à mente foi uma lição de moral da escola primária.

Nós éramos crianças de 10 anos que ainda não sabiam como pensar por nós mesmos, então a professora da nossa classe, uma mulher de 20 e tantos anos, nos perguntou algo assim:

[Todos vocês já disseram que uma vida humana é algo que não pode ser substituída, e é mais valiosa do que qualquer coisa. Agora, se fosse dado um valor monetário, quanto dinheiro você acha que que valeria a pena?].

Ela então tomou uma pose pensativa. Achei que o jeito dela de fazer a pergunta era inadequado, pessoalmente. Ela ficou em silêncio por uns bons 20 segundos, ainda segurando um pedaço de giz e olhando para o quadro negro de costas para os alunos.

Enquanto ela fazia isso, os estudantes refletiam sobre a questão. Muitos gostaram da jovem e bonita professora, por isso queriam dizer algo agradável que lhes dessem um elogio.

Uma sabe-tudo levantou a mão.

[Eu li em um livro uma vez que as despesas totais da vida de um assalariado são de cerca de 200* milhões a 300* milhões de ienes. Então eu acho que uma pessoa comum seria em torno disso].
*
¥200.000.000,00 = R$6.382.000,00 e ¥300.000.000,00 = R$9.573.000,00 de acordo com a cotação do dia 16/04/18;

Metade dos alunos da turma se reuniram e ficaram quietos. A outra metade pareciam entediados e cansados. A maioria dos alunos odiava essa sabe-tudo.

A professora conseguiu dar um sorriso e um aceno de cabeça.

[Isso é certamente verdade. Talvez os adultos lhe dessem a mesma resposta. Uma resposta poderia ser que o dinheiro gasto ao longo da vida é igual ao valor dessa vida. Mas quero que você se afaste dessa linha de pensamento. ...Eu sei, vamos fazer uma metáfora. A habitual e difícil de entender metáfora]. 


Ninguém entendeu o que deveria ser a figura que a professora desenhou no quadro em giz azul. Você poderia olhar para ela como um humano, ou como uma mancha de chiclete na rua. Mas essa era exatamente a intenção dela.

[Essa 'Coisa de Natureza Desconhecida' tem mais dinheiro do que poderia precisar. Mas essa 'Coisa' anseia por viver uma espécie de vida humana. Então, está tentando comprar a vida de outra pessoa. Um dia, você de repente passa pela 'Coisa'. E quando você faz, ele pergunta: "Ei, você quer me vender a vida que você vai levar?" ...diz a 'Coisa'].

Ela parou a história por um momento.

[Se eu vendesse, o que aconteceria?], perguntou um menino excessivamente sério depois de levantar a mão.

[Você morreria, com certeza], a professora respondeu categoricamente. [Então você recusaria a Coisa, por enquanto. Mas isso depende de você. “Bem, se for apenas a metade está tudo bem. Quer me vender 30 dos 60 anos que você tem restando? Eu realmente preciso disso, sabe"].

Lembro-me de pensar como se eu tivesse escutando ela com meu queixo em minhas mãos: 'Entendi'. De fato, se fosse assim, eu realmente teria sentido vontade de vender. Eu tenho limites, e parecia evidente que uma vida curta e gorda seria preferível a uma vida longa e magra.

[Agora, aqui está a questão. Essa 'Coisa' que anseia por viver uma vida humana deve ter atribuído um valor por ano à sua vida restante, sim? ...eu já direi com antecedência, não há resposta certa. Eu quero saber o que vocês pensam e como vocês chegaram a essa resposta. Agora fale com seus vizinhos de carteira].

A sala de aula começou a se agitar com a conversa. Mas eu não participei de nada disso. Para ser exato, não consegui. Porque, assim como aquela sabe-tudo que deu aquela resposta sobre as despesas de uma vida inteira, eu era um dos indivíduos desprezíveis da classe. Eu fingi que não estava interessado em conversar sobre isso e apenas esperei o tempo passar.

Eu ouvi um grupo sentado na minha frente conversando sobre.

[Se uma vida inteira é de cerca de 300 milhões de ienes...].

Eu pensei. Se eles valiam 300 milhões, então... Eu não acharia estranho se eu valesse 3 bilhões*. 

*¥3.000.000.000,00 = R$95.093.800,00 de acordo com a cotação do dia 16/04/18;

Não me lembro quais foram os resultados da discussão. Argumentos improdutivos do inicio ao fim, isso era certo. Não era um tema bastante simples para crianças do ensino fundamental resolverem. E se você tem um monte de estudantes do ensino médio juntos, eles provavelmente trariam sexo para a discussão de alguma forma.
 

De qualquer forma, eu me lembro claramente de uma garota com perspectivas sombrias insistindo ferozmente: 

[Você não pode atribuir um valor à vida de uma pessoa].

Sim, se você estivesse vendendo a chance de viver a mesma vida dela, eu não daria um valor, eu pensei. Provavelmente pediria por uma taxa de descarte, na verdade.

O palhaço da turma, que tem pelo menos um em cada sala, parecia estar pensando em linhas semelhantes.

[Mas se eu estivesse vendendo o chance de viver a mesma vida que eu, vocês nem pagariam 300 ienes, não é?]. Ele disse, fazendo os outros rirem.

Eu poderia concordar com o seu pensamento, mas me irritou um pouco como ele estava ciente de que ele valeria muito mais do que o bando excessivamente sério ao seu redor, e ainda deu uma gargalhada autodepreciativa sobre isto.

A propósito, a professora disse na época que não havia resposta certa. Mas uma resposta correta existia. Porque 10 anos depois, quando eu tinha 20 anos, na verdade vendi minha vida e recebi seu valor.

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Eu pensava quando eu era criança, que eu iria crescer para ser alguém famoso. Eu pensava que eu estava à frente do grupo e se destacou em comparação com os outros da minha geração. Infelizmente, no pequeno pedaço do inferno em que vivi, pais chatos e sem esperança que deram à luz crianças chatas e sem esperança eram a norma, o que ajudou a estimular esse equívoco.

Eu olhei para as crianças ao meu redor. Eu não tinha habilidades dignas de me gabar nem humildade, então naturalmente, meus colegas foram antipáticos. Não foi uma ocasião rara que eu fiquei de fora de um grupo, ou que minhas coisas foram tomadas e escondidas de mim.

Eu sempre fui capaz de obter pontuações perfeitas nos testes, mas eu não era o único que poderia fazer isso. Sim, assim como Himeno, a 'sabe-tudo' mencionada acima. Graças a ela, eu não poderia realmente ser o número um, e graças a mim Himeno não poderia realmente ser a número um.

Então, pelo menos aparentemente, brigávamos ou algo parecido. Nós só poderíamos apenas pensar em tentar ser melhor que o outro. Mas por outro lado, era evidente que éramos os únicos que entendiam um ao outro. Ela era a única que sempre soube do que eu estava falando sem nenhum equívoco, e talvez o contrário também fosse verdade. Por causa disso, no final das contas, estávamos sempre juntos.

Desde o início, nossas casas estavam quase em frente uma da outra, então nós brincávamos juntos desde a infância. Eu suponho que o termo 'amiga de infância' se aplicaria. Nossos pais eram amigos, então até nós entrarmos no ensino fundamental, eu ficaria na casa dela quando meus pais estivessem ocupados, e a Himeno ficaria em minha casa quando seus pais estivessem ocupados.

Embora nos víssemos apenas como concorrentes, havia um acordo implícito de nos comportarmos de maneira amigável diante de nossos pais. Não havia nenhum motivo específico, por assim dizer. Nós apenas pensamos que seria melhor assim. Embora debaixo da mesa, era uma relação de chutes nas canelas e beliscões nas coxas, pelo menos quando nossos pais estavam por perto, éramos amáveis amigos de infância. Mas você sabe, talvez isso realmente fosse verdade.

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Himeno era odiada pelos nossos colegas de classe por razões similares a que eu era. Ela estava convencida de sua própria inteligência e menosprezou as pessoas ao meu redor, e desde que essa atitude era tão descarada, ela era evitada na sala de aula.

A minha casa e a da Himeno foram construídas em um bairro no topo de uma colina, muito longe de qualquer outra casa de estudantes. Isso foi sorte. Poderíamos assim, usar a distância como uma desculpa furada para justificar ir para as nossas casas em vez de irmos para as casas dos nossos amigos. Somente quando estávamos desesperadamente entediados nos visitávamos, relutantes e fazendo caretas que diziam 'não estou aqui porque quero estar'.

Em dias como o festival de verão ou o natal, para evitar que nossos pais se preocupassem, saíamos e passávamos algum tempo juntos, em dias com atividades de pais e filhos e visitas de classe, nós fingíamos nos dar bem.

Nós agimos como se disséssemos 'Nós gostávamos mais quando éramos apenas nós dois, então estamos fazendo isso por escolha'. Eu achei que era muito preferível estar com a minha odiada amiga de infância do que me forçar a entrar nas boas graças de meus colegas de classe débeis mentais.

Para nós, o ensino fundamental era um lugar onde a motivação vinha para morrer. Muitas vezes, a chateação dirigida a mim e a Himeno se tornava um problema, e tínhamos um conselho de classe.

A mulher que nos ensinou do 4º ao 6º ano tinha uma tinha uma compreensão sobre esse problema, e enquanto não fosse horrível, nos impedia de ter que chamar nossos pais para isso. De fato, se nossos pais soubessem que estávamos sendo intimidados, nossa posição seria imutável. Nossa professora reconheceu que precisávamos de pelo menos um lugar onde pudéssemos esquecer nosso tratamento cruel. Mas de qualquer forma, Himeno e eu estávamos sempre fartos daquilo. Assim era todo mundo conosco, vagamente, já que 'farto' era o único relacionamento que tínhamos com eles.

O maior problema para nós, foi que nós não tínhamos bons sorrisos. Eu não conseguia pegar o 'momento certo' quando todo mundo sorri de uma só vez. Quando tentei forçar meus músculos do rosto a se mexer, ouvi meu âmago sendo cortado fora. Himeno deve ter se sentido da mesma forma. Mesmo em uma situação que deveria trazer um sorriso de aprovação, nós não movemos uma sobrancelha. Não podíamos mover uma sobrancelha, eu diria.

Fomos assim ridicularizados por sermos arrogantes em nosso pedestal. De fato, éramos arrogantes e estávamos em nossos respectivos pedestais. Mas essa não foi a única razão pela qual não pudemos sorrir com os outros. Himeno e eu estávamos desalinhados em um nível mais fundamental, como flores tentando florescer na estação errada.

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Foi no verão quando eu tinha 10 anos. Himeno carregando sua bolsa que foi jogada no lixo dezenas de vezes, e eu usando sapatos com muitos cortes feitos com uma tesoura, nos sentamos nos degraus de pedra de um santuário avermelhado pelo pôr do sol, esperando por algo.

De onde nos sentamos, poderíamos olhar para o recinto do festival. A rua estreita que levava ao santuário estava cheia de carroças, e duas filas de lanternas de papel corriam como luzes de pista, iluminando seus arredores escuros de vermelho. Todos que passavam por lá pareciam alegres, e foi por isso que não pudemos ir até lá.

Nós dois estávamos em silêncio porque sabíamos que, se abríssemos nossas bocas, a voz vazaria. Mantivemos nossas bocas bem fechadas e sentamos lá, suportando. O que Himeno e eu estávamos esperando era 'algo' que reconheceria nossa existência e nos entenderia completamente. Já que estávamos em um santuário cercado pelo incessante zumbido das cigarras, é perfeitamente possível que estivéssemos orando.

Quando o sol estava se pondo, Himeno levantou-se de repente, limpou a sujeira da saia e olhou para frente.

[Nosso futuro vai ser ótimo], disse ela com sua voz transparente que só ela tinha. Era como se ela estivesse afirmando um fato que ela acabou de perceber.

[... Sobre quanto tempo estamos falando?], perguntei.

[Não tão cedo eu acho, mas não tão longe também. Talvez daqui a 10 anos].

[Em 10 anos], eu repeti. [Nós vamos ter 20 então].

Para nós, que tínhamos 10 anos de idade, 20 anos pareciam ser uma idade adulta realmente crescida. Então eu senti que havia alguma verdade na alegação da Himeno.

Ela continuou.

[Sim, essa 'coisa' definitivamente acontecerá no verão. Algo realmente bom nos acontecerá no verão daqui a 10 anos, e então finalmente sentiremos que estamos felizes por termos vivido. Seremos ricos e famosos, e olhando para o ensino fundamental, diremos... "Essa escola não nos deu nada. Todos os alunos eram burros - não era nem um pouco boa, nem como erro de aprendizado. Uma escola primária muito ruim", nós vamos dizer].

[Sim, realmente estava cheio de burros. Foi realmente ruim], eu disse.

Aquele ponto de vista foi bastante novo para mim na época. Para um aluno do ensino fundamental, sua escola é o mundo inteiro, então é impensável que tenha coisas como vantagens e desvantagens.

[Então, em 10 anos, precisamos ser realmente ricos e famosos. Tão famosos que nossos colegas terão ataques cardíacos por ciúmes].

[Então eles vão morder seus lábios de ciúmes], eu concordei.

[E se não acontecer, não valerá a pena], ela sorriu.

Eu não considero isso um consolo. No momento em que saiu da boca da Himeno, quase senti que era o nosso futuro garantido. Isso ecoou como uma premonição. Talvez não nos tornemos necessariamente famosos. Mas em 10 anos, vamos triunfar sobre eles. Nós faremos com que eles se arrependam de nos tratar assim em seus túmulos.

[... Ainda assim, deve ser ótimo ter 20 anos], disse Himeno, colocando as mãos atrás das costas e olhando para o céu do por do sol. [20 anos daqui a 10 anos...].

[Nós poderemos beber. Fumar. E casar - espera, isso é mais cedo], eu disse.

[Correto. Garotas podem se casar aos 16 anos].

[E garotos com 18 anos... Mas sinto que nunca poderei me casar].

[Por quê?].

[Há muitas coisas que eu não gosto. Eu odeio muitas coisas que acontecem no mundo. Então eu não acho que eu poderia manter um casamento].

[Hã. Sim, para mim deve ser igual também]. Himeno abaixou a cabeça.

Tingida pelo pôr do sol, seu rosto parecia diferente do habitual. Pareceu mais maduro, mas também mais vulnerável.
 

[... Ei, então], disse Himeno, olhando-me nos olhos brevemente, mas rapidamente desviando o olhar. 

[Quando fizermos 20 anos e ficarmos famosos... Se, por mais vergonhoso que seja, não encontramos ninguém com quem queremos nos casar...].

Ela tossiu baixinho.

[Se isso acontecer, já que nós dois ficaríamos na prateleira, você gostaria que ficássemos juntos?].

Sua mudança repentina no tom provou seu constrangimento, e mesmo naquela época eu a conhecia muito bem.

[O que foi isso?], eu respondi educadamente.

[...Uma piada. Esqueça isso], Himeno riu como se fosse para empurrar para longe. 


[Só queria me ouvir dizer isso. Não é como se eu fosse ficar sobrando].

Isso é bom, eu ri.

Mas -  eu sei que isso soará extremamente estúpido - mesmo depois que Himeno e eu seguimos caminhos separados, eu sempre me lembrei daquela promessa. Então, mesmo que uma garota razoavelmente encantadora mostrasse seu afeto por mim, eu definitivamente a recusaria. Mesmo no ensino médio, mesmo no ensino médio, mesmo na faculdade. Então, quando eu algum dia a encontrar novamente, eu poderia mostrar a ela que eu ainda estava 'na prateleira'.

De fato, sim, eu acho que é estúpido.

Já faz 10 anos desde então.


Olhando para trás agora, acho que talvez tenha sido uma época gloriosa, à sua própria maneira 

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